terça-feira, 17 de maio de 2011

Slavoj Zizek, um sujeito incômodo


2011-05-15 - Folha de S. Paulo - Ilustríssima
Vivian Whiteman



"Em que espécie de mundo estamos quando Hollywood precisa retirar o sexo dos filmes?", pergunta Slavoj Zizek, ao comentar a súbita frigidez de James Bond no último episódio da saga,Quantum of Solace, um sinal da "economia do medo" que, segundo ele, rege as relações humanas contemporâneas.


Provocador nato e defensor ousado de uma nova encarnação do comunismo, Zizek vem ao Brasil nesta semana para divulgar seus últimos livros lançados no país: Em defesa das causas perdidas ePrimeiro como tragédia, depois como farsa. Em São Paulo, no dia 21, participa do Projeto Revoluções (inscrições em revolucoes.org.br), organizado pelo Sesc, Instituto de Tecnologia Social, Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal e pela editora Boitempo. No dia 24, fala no Cine Odeon, no Rio, para as mais de 2.000 pessoas que se inscreveram para vê-lo.


Em entrevista à Folha, por telefone, ele apontou sua metralhadora teórica na direção de assuntos como levantes populares, bullying e falsa liberdade.


*


Folha - No livro Em defesa das causas perdidas, o sr. defende a "hipótese comunista", uma alternativa ao capitalismo, e fala em ditadura do proletariado. Essa terminologia não gera resistência?

Slavoj Zizek -
 Quero deixar claro que o comunismo do século 20 está morto e que não sou um ingênuo que acredita num grande retorno do Partido Comunista. O stalinismo foi a materialização do horror. Defendo o uso desses termos porque qualquer conservador moderno de direita sai por aí dizendo que precisamos de mais solidariedade. Por outro lado, são termos que se referem à memória coletiva da humanidade e remetem a momentos em que existiram explosões populares igualitárias verdadeiras. Não se trata de repetir o modelo fracassado, mas de preservar o momento em que foi possível ter a liberdade de pensar e agir segundo a ideia de que o capitalismo não é um fato dado.



Um de seus argumentos para defender o comunismo é a questão da propriedade intelectual. Por que diz que o conceito de conhecimento é comunista?


O conhecimento é naturalmente comunista, o que quer dizer que já inclui a ideia de algo feito para ser compartilhado. E isso não pode ser transformado numa "commodity" de mercado. Vamos pensar em apenas dois exemplos importantes: a propriedade do patrimônio biogenético e ecológico, incluindo aí todas as recentes descobertas científicas, o genoma etc.


Estamos falando do controle privado da nossa substância genética e do ambiente em que vivemos. O conhecimento é nossa substância simbólica e pertence a todos, não pode ser de grupos privados. Outro dia, um grupo de estudantes me pediu originais de um livro meu para "pirateá-lo" entre os colegas. Atendi imediatamente.


Em Primeiro como tragédia, depois como farsa, o sr. fala que a crise de 2008 foi um embuste que revelou novas formas de colonialismo. Que formas são essas?


A crise de 2008 foi uma farsa no sentido de que foi um reflexo esperado das medidas tomadas nos EUA em 2001 --redirecionar o foco das empresas de internet que estavam falindo para o mercado imobiliário. É claro que a bomba estourou, mas a novidade é que essa crise planejada afetou os países muito seletivamente.


O Brasil passou bem pela crise...


Lula entendeu algo muito importante, que a esmagadora maioria da esquerda mundial não entende: o capitalismo de hoje não é um sistema hegemônico. Está cheio de inconsistências e divisões internas. A crise de 2008 foi uma crise do capitalismo global, mas, ao mesmo tempo, nos mostrou que estamos entrando numa era multicêntrica. Antes, se as economias norte-americana e dos principais países europeus iam bem, tudo ia bem. Agora, as coisas mudaram.


Isso pode ser bom por um lado, pois podemos pensar que o imperialismo norte-americano não é mais tão poderoso. Mas também traz um novo perigo: já podemos falar da emergência do colonialismo econômico chinês. A China patrocina governos corruptos locais para poder explorar recursos minerais, por exemplo, e manter seu lugar de destaque no mercado.


Aqui, queria fazer um parêntese e uma crítica a Lula. Talvez para mostrar que o Brasil não é mais dependente dos EUA, ele apoiou Mahmoud Ahmadinejad quando as eleições foram contestadas no Irã. Para mim, foi um erro terrível.


A seu ver, Lula deveria ter apoiado o outro lado?


Sim! Mir Hossein Mousavi, o candidato que foi roubado nas eleições, não era mais um liberal pró-ocidental oportunista. Na verdade, representava a verdadeira alternativa democrática: veio da revolução liderada por Khomeini [levante islamista que derrubou a monarquia no Irã em 1979].


Mousavi estava no caminho dos levantes que começaram recentemente no Egito e na Tunísia, fenômenos nos quais tenho alguma esperança. Ninguém esperava isso: que exatamente nos países árabes tivéssemos movimentos democráticos emancipatórios desse tipo.


Por que países como a França e a Inglaterra ficaram tão reticentes quanto ao levante no Egito?


O discurso norte-americano e da Europa Ocidental foi sempre o seguinte: as intervenções nos países árabes acontecem no sentido de evitar levantes fundamentalistas e estimular a liberdade, a luta pela democracia etc. Muito bem: é exatamente isso o que aconteceu no Egito, e eles não ficaram contentes, mudaram o discurso. Mas de fato há razões para que eles fiquem assustados.


O que está acontecendo no Egito não é simples. Não se trata apenas de um "queremos ser uma democracia liberal". As pessoas no Egito estão lutando por algo diferente, por algo novo.


O importante é o que acontece no que chamo de "o dia seguinte", ou seja, como as reivindicações são institucionalizadas em uma nova ordem.


E como lê a situação da Líbia?


O episódio Gaddafi não traz nada de novo. É a repetição da fórmula que inclui intervenção militar, envio de ajuda humanitária etc. Ou seja, é um episódio que pode ser lido dentro da lógica da guerra ao terror americana. A Líbia não vive nada realmente novo, ao contrário do Egito.


O sr. estabelece uma relação direta entre capitalismo e bullying. Por que esse último se transformou numa espécie de paranoia mundial?


O paradoxo é o seguinte: de um lado, temos a permissividade capitalista, e do outro, uma sociedade mais regulada do que nunca. Ou seja, em princípio, não há regras rígidas a serem seguidas, mas, ao mesmo tempo, tudo o que você disser ou fizer pode ser apontado como ofensa ou ameaça.


O cerne da questão trata do velho problema cristão de "amar o próximo". Cada vez mais, nosso próximo é percebido como ameaça em potencial. Isso tem ligação direta com a política do medo pós-11 de Setembro. Com a desculpa de proteger a população de possíveis novos atentados, os níveis de vigilância chegaram a patamares absurdos, liberdades foram cassadas e o clima de pânico, instaurado. A verdade é que, apesar de todo o discurso liberal, vivemos numa das sociedades mais controladas de todos os tempos.


Existe algo muito errado com essa subjetividade ultranarcisista que está surgindo desse cenário.


Temos de falar de um exemplo muito importante: o ato sexual apaixonado está sendo abandonado. O último filme de "James Bond", por exemplo, Quantum of Solace (2008), é o primeiro da série em que não existe uma cena de sexo entre Bond e a "Bond girl". Em O Código da Vinci também não há sexo, embora o ato sexual exista nos romances que deram origem ao filme.


A indústria do cinema sempre teve o papel de acrescentar sexo aos roteiros para torná-los mais atraentes. Então, em que espécie de mundo estamos quando Hollywood precisa retirar o sexo dos filmes? Estamos falando de uma economia de relações baseada no medo.


O sr. tem batido muito na tecla da "farsa ecológica" alimentada pela culpa das elites. Não existe de fato uma ameaça ecológica? 


Existem problemas graves, é óbvio, mas as soluções para eles não estão nas "ecobags" ou noutra idiotice desse tipo. Entre as classes média e alta, é chique dizer que você é "consciente", que recicla lixo e se preocupa com o ambiente. Isso é imbecilidade, me desculpe. É praticamente uma superstição, algo que tira a sua culpa e faz você se sentir bem. Os ecologistas radicais são os maiores críticos desse tipo de ritual da elite, eles chamam isso de "lifestyle" ecologista e pesquisas provam que o impacto positivo desse tipo de atitude no cenário global é irrelevante.


Nos livros Em defesa das causas perdidas e A visão em paralaxe, o sr. aponta as favelas como foco potencial de ideias de organização revolucionárias. Não há também uma idealização dos favelados?


Sim, é claro. Não se trata de idealizar os pobres como vítimas boa¬zinhas. Meus amigos intelectuais do Rio queriam me levar num desses passeios turísticos pelas favelas cariocas, uma coisa horrível. O que penso é que nas favelas há a organização dos que foram ou ainda são excluídos pelo poder público. É claro, há o tráfico e as igrejas que suprem essa falta, mas isso pode mudar. As favelas não precisam de caridade, precisam de alianças.


Título: Primeiro como tragédia, depois como farsa
Título Original: First as tragedy, then as farce
Autor(a): Slavoj Žižek
Prefácio: Slavoj Žižek
Tradutor(a): Maria Beatriz de Medina
Páginas: 136
Ano de publicação: 2011
ISBN: 978-85-7559-174-1
Preço: R$ 34,00
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Em Primeiro como tragédia, depois como farsa – analogia à famosa frase de Karl Marx em O dezoito brumário sobre a repetição dos Bonaparte no poder (Napoleão e Luís) –, o filósofo esloveno Slavoj Žižek sustenta a tese de que vivemos em uma nova etapa do capitalismo global, na qual o mesmo discurso que garantiu uma ofensiva geopolítica após os atentados de 11 de setembro tem encontrado dificuldade em se sustentar no período pós-crise financeira de 2008. Traçando uma argumentação tanto da tragédia como da atual farsa, o autor expõe o cinismo contemporâneo dos pregadores e praticantes da democracia liberal ao analisar o discurso do presidente Bush em dois momentos diferentes que evocam a suspensão parcial dos valores norte-americanos (garantia de liberdade individual, capitalismo de mercado) para salvar da falência esses mesmos valores. A Žižek parece, portanto, que a utopia democrático-liberal teve de morrer duas vezes, já que o colapso da utopia política do 11 de Setembro não trouxe o fim da utopia econômica do capitalismo de mercado global, o que só ocorreu com a crise financeira de 2008.


Para o autor, o mais atual anacronismo vivido pelas nações modernas teve início com a queda do Muro de Berlim, evento histórico que parecia anunciar a vitória da democracia liberal e o surgimento de uma comunidade global sem fronteiras. O 11 de Setembro, no entanto, revelou um movimento oposto com o surgimento de novos muros e contradições: entre Israel e Cisjordânia, em torno da União Europeia, na fronteira entre Estados Unidos e México e até no interior de Estados-nações, que acolhem “cidadãos globais” que vivem isolados em “castelos na Escócia, apartamento em Manhattan e ilha particular no Caribe”, além dos moradores das favelas e bolsões de pobreza, que são o outro lado da mesma moeda.


As condições e conseqüências da crise em curso são abordadas em uma análise que se auto-afirma engajada. Dividido em dois capítulos, o livro faz um diagnóstico do âmago utópico da ideologia capitalista e busca localizar aspectos dessa difícil situação que abrem espaço para novas formas de práxis comunista. “A única maneira de compreender a verdadeira novidade do novo é analisar o mundo pela lente do que era ‘eterno’ no velho”, afirma Zizek. Tomando a idéia de comunismo como “eterna” não no sentido de uma série de características universais e abstratas que podem ser aplicadas em toda parte, mas no sentido de que deve ser reinventada a cada nova situação histórica, Zizek propõe uma mudança de perspectiva, que questione a situação atual do ponto de vista da idéia emancipadora e não mais a pertinência desta como ferramenta de análise e prática política.


Trecho do livro


“(...) na democracia, cada cidadão comum é de fato um rei – mas um rei numa democracia constitucional, um monarca que decide apenas formalmente, cuja função é apenas assinar as medidas propostas pelo governo executivo. É por isso que o problema dos rituais democráticos é semelhante ao grande problema da monarquia constitucional: como proteger a dignidade do rei? Como manter a aparência de que o rei toma as decisões, quando todos sabemos que isso não é verdade? Trotsky estava certo então em sua crítica básica à democracia parlamentar: não é que ela dê poder demais às massas não instruídas, mas que, paradoxalmente, apassive as massas, deixando a iniciativa para o aparelho do poder estatal (ao contrário dos ‘sovietes’, em que as classes trabalhadoras se mobilizam e exercem o poder diretamente). Por conseguinte, o que chamamos de ‘crise da democracia’ não ocorre quando os indivíduos deixam de acreditar em seu poder, mas, ao contrário, quando deixam de confiar nas elites, que supostamente sabem por eles e fornecem as diretrizes, quando vivenciam a angústia que acompanha o reconhecimento de que ‘o (verdadeiro) trono está vazio’, de que a decisão agora é realmente deles. É por isso que, nas ‘eleições livres’, há sempre um aspecto mínimo de boa educação: os que estão no poder fingem educadamente que não detêm de fato o poder e nos pedem para decidir livremente se queremos lhes dar o poder – num modo que imita a lógica do gesto feito para ser recusado.”


Sobre o autor


Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek é também um dos diretores do centro de humanidades da Universidade de Londres. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução(2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009) e Em defesa das causas perdidas (2011).

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