quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Crime e castigo


por Tory Oliveira, para a Carta Capital

Anteprojeto de lei quer criminalizar o bullying. Para especialistas, educação e prevenção ainda são as melhores soluções para amenizar o problema.
1105 300x297 Crime e castigoAssediado pelos colegas de escola desde a segunda série, o australiano Casey Heynes tornou-se um símbolo do bullyingdepois que um vídeo seu espalhou-se pela internet. Captado por celular, o vídeo mostra o gordinho de 15 anos sendo provocado por um valentão. Tudo muda quando, depois de levar um soco, Casey revida, levantando o agressor no ar e jogando-o no chão, em um golpe parecido com o do personagem de videogame Zangief. Apelidado de Garoto Zangief, Casey declarou à televisão australiana que chegou a pensar em suicídio.
O bullying, definido como violência física ou psicológica gratuita realizada dentro de uma situação de desequilíbrio de forças, pode ganhar no Brasil uma nova dimensão: a de crime. A Promotoria da Infância e da Juventude de São Paulo apresentou um anteprojeto que o criminaliza, com pena de até três anos de reclusão para menores de 18 anos.
Um dos redatores do texto-base, o promotor Mario Augusto Bruno Neto, explica que um aumento gradativo no número de bullying relatados à Promotoria da Infância e da Juventude de São Paulo, nos últimos cinco anos, trouxe o assunto à tona. “Ano passado, tivemos casos graves em escolas de São Paulo e reparamos que estávamos desaparelhados para lidar com o problema”, explica.
O texto do anteprojeto prevê pena mínima de um ano e máxima de 30 anos (em caso de morte) para maiores de 18 anos. Menores de idade que cometerem bullying receberão, de acordo com a gravidade, uma das seis medidas socioeducativas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que vão desde uma advertência e prestação de serviços até internação na Fundação Casa, a nova Febem. A internação poderá ser aplicada em casos violentos, com grave ameaça ou reincidente. “Vamos imaginar que o menino venha a ser processado pela prática desse tipo penal. Da primeira vez, não ocorrendo violência ou grave ameaça ou morte, ele recebe, por exemplo, uma medida de prestação de serviços à comunidade. Se ele persistir, teoricamente, é possível a internação”, exemplifica Bruno Neto. A internação, pelo ECA, é limitada a um prazo máximo de três anos.
É ou não crime?
Precursora das pesquisas sobre o tema no Brasil, a consultora educacional Cléo Fante discorda do tratamento criminal. “Antes de punir, o ideal seria prevenir. Seria muito importante que as instituições encontrassem alternativas para o enfrentamento do bullying. A punição deveria ser a última instância”, defende. O psicólogo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Renato Alves, também é contra a criminalização. “Só vai remediar o mal já feito. A única coisa que tem o poder de prevenir são ações educativas.”
O objetivo maior de se criar uma legislação específica para o bullying, de acordo com o promotor, é criar consciência. “Eu vou diminuir os casos na medida em que a escola se aparelhar melhor.” Para Bruno Neto, a ideia é atuar em parceria com a escola. “Se a escola falhar, ela sabe que terá a retaguarda da lei.” Criminalmente, nem os pais nem a escola podem responder pelo bullying praticado por um aluno, ainda que menor de idade.
O problema começou a ser estudado a partir da década de 1970, na Escandinávia. No Brasil, os primeiros estudos datam dos anos 2000. O fato é que as causas e consequências da prática passaram a ter mais repercussão a partir de casos específicos e extremos. A mídia faz uma cobertura constante, com picos de atenção, desde o incidente de Columbine, em 1999, quando uma dupla de adolescentes feriu 21, matou 12 e cometeu suicídio em uma escola de ensino médio norte-americana.
No Brasil, o primeiro caso expressivo aconteceu em Taiúva (SP), quando um rapaz de 18 anos voltou à escola onde estudava portando uma arma – feriu oito pessoas e cometeu suicídio, em 2003. A cobertura do massacre de Realengo, no Rio de Janeiro – em que um ex-aluno, Wellington Menezes, invadiu uma escola e assassinou 12 crianças no dia 8 de abril deste ano –, também levantou o tema.
A mais abrangente pesquisa já publicada sobre o tema no Brasil (Bullying no Ambiente Escolar, de 2009) constatou que um em cada dez estudantes brasileiros já praticou ou sofreu bullying na escola. A escalada de uma cultura altamente competitiva na sociedade brasileira pode explicar, em parte, a sensação de agravamento do fenômeno. “Muitas vezes, denegrir, minimizar e abalar moralmente o outro faz parte do jogo de competição”, explica Renato Alves.
Mesmo que vingue, o anteprojeto precisa percorrer um longo caminho antes de se tornar lei. Em maio, Bruno Neto fez uma primeira redação do anteprojeto, depois entregue para outros 12 promotores, que estudaram e sugeriram alterações no texto. Se tudo correr como esperado, o promotor vai pedir o apoio do procurador-geral do Ministério Público, Fernando Grella Vieira, a fim de levar o projeto até um deputado federal. Só então o anteprojeto deverá ser apresentado e votado no Congresso.
* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.
(Carta Capital)

terça-feira, 9 de agosto de 2011

“Não é verdade que o Brasil gaste muito em políticas sociais”

Por Paulo Daniel*
Neste mês de agosto, o blog Além de Economia, em conjunto com o site da revista CartaCapital realiza uma série de entrevistas com economistas respeitados e renomados para que possamos debater e compreender a crise pela qual o mundo está passando em oposição ao crescimento e certo desenvolvimento econômico e social brasileiro.
conciencia negra12 300x215 Não é verdade que o Brasil gaste muito em políticas sociaisPara inaugurar essas entrevistas, convidamos a professora Rosa Maria Marques, economista com pós-doutorado na Faculte de Sciences Economiques da Université Pierre Mendes France de Grenoble, professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Marques foi presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) e integrante da Comissão de Orçamento e Finanças do Conselho Nacional de Saúde. É autora de vários livros, sendo o mais recente O Brasil sob a Nova Ordem. Atualmente, está desenvolvendo Estágio Sênior na Universidade de Buenos Aires, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Confira abaixo a entrevista.
Além de Economia/CartaCapital: As políticas públicas como saúde, educação, previdência, transportes, etc. são importantes para elevar o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas. Entretanto, alguns economistas afirmam que o Estado brasileiro gasta muito com essas políticas e de forma irracional. Qual saída poderia ser adotada para ampliar o acesso a esses serviços públicos sem necessariamente aumentar impostos?
Rosa Maria Marques: Em primeiro lugar, não é verdade que o Estado brasileiro gaste muito em políticas sociais. No caso da saúde, por exemplo, segundo a Organização Mundial da Saúde, os países que oferecem um sistema público universal (como é o caso do SUS), tais como Reino Unido, Suécia, Espanha, Itália, Alemanha, França, Canadá e Austrália, destinaram em média, em 2008, 6,7% do PIB. No mesmo ano, o gasto do Brasil, somando as três esferas de governo, foi de 3,24%. O mesmo acontece com a educação e com a previdência.
Agora, o problema de acesso é diferente. Na saúde, é o seu principal problema. Principalmente nas capitais e nas grandes cidades, os usuários enfrentam problemas de acesso para os níveis de média e alta complexidade, mas não necessariamente para a assistência básica. Já nas pequenas cidades, a dificuldade de acesso anterior se soma ao fato de que os equipamentos desses níveis de atenção estão concentrados nas maiores cidades. Este é o principal desafio a ser respondido na área da saúde. Mas, enquanto o SUS continuar a depender em grande parte dos serviços prestados pelo setor privado, é difícil resolver esse problema. Isto porque o setor privado que é conveniado ao SUS atende simultaneamente os planos de saúde e os particulares (com os quais ganha mais) e tende a fazer seus investimentos nos grandes centros do país. Há um outro aspecto que vale a pena ser mencionado: o fato de que parte do gasto das famílias com os planos de saúde e com medicina privada é pago pelo governo federal, mediante o desconto do imposto de renda. De certa forma, o Estado brasileiro garante parte da demanda dos planos de saúde.
O problema de acesso à previdência decorre de como ela foi pensada ou construída: em cima do mercado formal de trabalho. Quem não tiver carteira assinada está, por definição, dela excluída. E a existência de uma informalidade expressiva entre os ocupados sempre foi uma marca de nosso mercado de trabalho. Mesmo que nos últimos anos a informalidade tenha caído, ela continua importante. Assim, para melhorar o acesso, não basta apenas apostar na formalização das relações de trabalho, é preciso se pensar em uma outra forma de organização da previdência, que leve em conta não só o critério meritocrático – de ter um trabalho formal – mas também incorpore o critério fundado na cidadania.
Acabei tratando apenas de duas políticas públicas, pois cada uma delas é bastante complexa. Se fôssemos falar da educação, precisaríamos definir de qual nível estamos falando.
AE/CC: A crise financeira e econômica pela qual a Europa está passando se deve à construção, desde a Segunda Guerra Mundial, do chamado Estado de bem-estar social? Se o Estado brasileiro aumentar os gastos públicos, principalmente os sociais, não estaria trilhando o mesmo caminho?
RMM: Em hipótese nenhuma, respondendo às duas questões. A crise da Europa, e também a dos Estados Unidos, deve-se ao crescimento desenfreado do capital fictício, isto é, daquele que busca ter lucro com a compra e venda de ativos, sem nenhuma relação com a produção. O problema dos países europeus, que ora estão em dificuldade, não foi provocado pelo gasto corrente de seus Estados e sim pelo setor financeiro, principalmente pelos bancos. A questão é que esse setor não aceitou internalizar as perdas da crise de 2008-2009. Não esqueçamos, por exemplo, que o crescimento mais recente do endividamento norte-americano foi devido à “ajuda” que o Estado deu ao setor financeiro.
AE/CC: Recentemente a presidenta Dilma lançou o programa Brasil sem Miséria, cujo objetivo é retirar da pobreza extrema 16 milhões de brasileiros(as) até 2014, é uma medida audaciosa ou tímida?
RMM: Nem audaciosa e nem tímida. Trata-se do prosseguimento do Programa Bolsa Família. Em junho deste ano, o Bolsa Família abrangeu 12.436.167 famílias. Este programa de fato melhorou a vida de seus beneficiários (das famílias pobres e muito pobres), mas não foi associado a outras políticas que alterem as condições da reprodução da pobreza no país.
AE/CC: Como uma estudiosa e especialista em Previdência, pode-se comparar as reformas realizadas na Europa com a brasileira? Há ainda necessidade de se reformar o sistema previdenciário brasileiro?
RMM: Há um aspecto que é comum, isto é, a constante preocupação em aumentar a idade de acesso à aposentadoria. Esta é a pior ironia que pode haver, pois o aumento da expectativa de vida deveria ser bem visto pela sociedade, já que se trata de uma conquista de toda a humanidade. Mas o que acontece é o contrário: viver mais passou a ser visto por alguns como um fardo e um privilégio.
Se alguma mudança deveria ser feita na Previdência brasileira, seria a incorporação de todos os cidadãos em sua cobertura. Para isso seria necessário se pensar em um novo desenho de seu sistema, o que envolveria repensar suas fontes de financiamento, sem abandonar a participação das contribuições sociais.
AE/CC: No que diz respeito ao financiamento público da saúde, quais são os entraves para universalizar o sistema e com qualidade?
RMM: Em parte já respondi a essa questão no início da entrevista, mas faltaria mencionar o fato de que até hoje a participação federal em seu financiamento não foi devida. Trata-se da Emenda Constitucional 29, que está há anos em compasso de espera para ser apreciada no Congresso.
AE/CC: Que papel o programa Bolsa Família tem na conjuntura política e econômica brasileira?
RMM: O Programa Bolsa Família é um programa relativamente barato. Em 2010, seu gasto representou 0,37% do PIB. Contudo, seu impacto é bastante significativo, não só porque diminuiu a pobreza absoluta e relativa (de 2003 a 2008, a população abaixo da linha de pobreza caiu 12% para 4,8%, e na de pobreza, de 26,1% para 14,1%), mas porque tem um efeito multiplicador grande no entorno de onde as famílias beneficiárias vivem. Há cidades onde os recursos desse programa são bastante importantes, quando comparados aos recursos próprios e às transferências constitucionais recebidas por esses municípios.
Em termos políticos, o Bolsa Família – assim como outras ações empreendidas durante o governo Lula – permitiu a construção de uma nova base de apoio, diferente daquela tradicionalmente compreendida pelos movimentos sociais e pelos sindicatos. Em 2008, publiquei na Revista de Economia Política, junto com outros colegas, um estudo que relaciona o Bolsa Família e os resultados das eleições de 2006. Seus resultados são bastante interessantes e instigantes.
AE/CC: Em 2010, a senhora e um conjunto de economistas lançou o livro O Brasil sob a Nova Ordem, pela editora Saraiva. Que nova ordem estamos vivendo?
RMM: Trata-se do fato de, nas últimas décadas, o capitalismo ter sido dominado por aquilo que se costuma chamar de capital financeiro, mas que, para ser mais precisa, seria pelo capital fictício, isto é, pela face mais perversa do capital financeiro. Isso significou que sua lógica de curto prazo foi imposta às empresas industriais e comerciais, deprimindo o investimento, reduzindo os salários na maioria dos países, piorando as condições de trabalho, e promovendo a retirada de direitos sociais, entre outros impactos.
Levando em conta essa lógica, o livro analisa como a adoção das recomendações do chamado Consenso de Washington modificou profundamente a economia, desde sua estrutura produtiva até a política econômica centrada nas metas de inflação, como também alterou o papel do Estado, as políticas públicas, entre outros aspectos.
* Paulo Daniel é economista, mestre em economia política pela PUC-SP, professor de economia e editor do blog Além de Economia.
** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.
(Carta Capital)

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A educação em estado de greve

por Leandro Uchoas*, do Brasl de Fato
Greves de profissionais da educação surgem em diversos pontos do país. Avanços no setor seriam de natureza apenas quantitativa.
142 300x199 A educação em estado de greveSepe/RJ
É consenso entre todas as pessoas, nos mais variados campos ideológicos. Não se constrói um país, com economia sólida, nem se conquista a emancipação das grandes massas, sem um padrão educacional de qualidade. Está no discurso de qualquer pessoa pública. Embora existam diferentes concepções do que seria “educação de qualidade”, ninguém questiona a sua centralidade em qualquer programa de governo. Torna-se, portanto, vergonhoso que o Brasil ainda apresente desempenho tão ruim no setor, e ainda ocupe, frequentemente, as piores posições em rankings. Há de se considerar alguns avanços nos últimos anos, especialmente a partir de 2008. Entretanto, muito aquém do que se supõe num setor que, por quase unanimidade, é considerado o mais estratégico de qualquer país.
Nas últimas semanas, a educação brasileira tem chamado especial atenção dos movimentos sociais. Em um momento de sutil ressurgimento de mobilizações populares, aparece uma série de greves no setor. Os servidores das universidades federais foram um dos primeiros a decretar a paralisação. Pelo menos três estados também vivem situações de greve: Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Norte. O Espírito Santo acaba de sair de uma. Por que surgiram agora? O cenário teria mudado nos novos governos, federal ou estaduais? Seria fruto do natural reordenamento político que um novo quadro eleitoral gera?
Para o educador da UERJ, Gaudêncio Frigotto, as causas das recentes greves seriam: “a situação salarial que obriga (alguns) professores a três jornadas de trabalho; as condições das escolas onde atuam, que têm se agravado nas duas últimas décadas com o avassalador avanço do pensamento mercantil na organização dos conteúdos; e métodos de ensino, avaliação e de férreo controle sobre os professores”. Segundo ele, a declaração recente à imprensa de Wilson Risolia, secretário estadual de Educação do Rio, ajuda a explicar o problema. “Penso na educação como um negócio. A vida é assim, premia quem é melhor. Vamos fazer avaliações periódicas, que servirão de base para um sistema de bonificação”, disse Risolia.
A mobilização no Rio Grande do Norte talvez seja a mais expressiva, atualmente. Há dois meses, o país conheceu Amanda Gurgel. Em audiência pública na Assembleia Legislativa, as corajosas denúncias da professora potiguar alcançaram mais de dois milhões de acessos no youtube. Tomando por base seu exemplo pessoal, denunciou o caos na educação do Estado. “Em nenhum momento, em nenhum governo, a educação foi uma prioridade aqui. Estamos aceitando o caos educacional como uma fatalidade?”, perguntou.
Avanço quantitativo
Josivan Barbosa Menezes, reitor da Universidade Federal Rural do Semi-árido (Ufersa), de Mossoró (RN), considera as greves pontuais. Para ele, o governo federal mantém a política da gestão anterior, que seria de estímulo às educações superior e tecnológica. “Durante o governo Lula, o Ministério da Educação (MEC) passou a ter uma visão mais sistêmica. Lula criou 14 universidades, fez concursos. Mas os ensinos básico e médio são, em geral, atribuições de municípios e estados. Essa greve dos servidores teve adesão de menos de 10% aqui no Rio Grande do Norte”, defendeu.
Para Frigotto, realmente houve avanços nos últimos anos. O problema, no entanto, seria a concepção de Educação. Como exemplo, ele cita o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). “O Fundeb tem o mérito de ampliar o universo do atendimento, atendendo a educação infantil e o ensino médio. Mas o aumento de recursos não é suficiente para que tenham impacto efetivo sobre as condições de trabalho, salário e infraestrutura necessárias. Aumentou-se os recursos, mas o número de alunos atendidos aumentou mais, proporcionalmente”, diz.
Para ele, os avanços recentes são apenas quantitativos. Desde a década de 1990, a concepção pedagógica que orienta a política educacional teria piorado de forma crescente. “O ideário produtivista e mercantil dominou o pensamento educacional contrapondo-se à concepção histórica crítica de educação”, afirma. No Congresso Nacional, uma série de projetos com forte apoio de certas bancadas preocupam os movimentos sociais. O PL 549, por exemplo, congelaria salários por dez anos. Também há o PL 248, que estabelece regras de demissão de servidores, e o PL 1749, que regulamenta a privatização dos hospitais.
* Do Rio de Janeiro (RJ).
** Publicado originalmente no site Brasil de Fato.
(Brasil de Fato)

A escravidão ainda nos assombra


Embora abolida oficialmente, a escravidão no Brasil ainda resiste de forma clandestina (e, às vezes, nem tão clandestina assim). Parte significativa da sociedade civil cansou de esperar pela boa vontade dos parlamentares e, com razão, pressiona-os para que aprovem definitivamente a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438, que determina a expropriação das terras onde for flagrado trabalho escravo.
Esta PEC já foi aprovada no Senado e, em primeiro turno, na Câmara. Mas, para ser totalmente aprovada e, assim, alterar a Constituição, ela precisa ser votada em segundo turno – algo que a bancada de parlamentares que representam o grande agronegócio (em que, em muitos casos, vigora o trabalho escravo) não quer. Dados do Ministério do Trabalho revelam que mais de cinco mil pessoas foram resgatadas de situações de trabalho escravo nos últimos dois anos.
Exposta assim, em palavras, a situação em que viviam esses milhares de seres humanos não parece tão cruel. É preciso que se conheça de perto esta desgraça para que se tenha noção do quanto ela é chocante: o cidadão, na busca por um emprego que lhe permita se alimentar e aos seus filhos ou pais, aceita um trabalho duro e com alta carga horária. Assim, ele já começa o dia “devendo” ao patrão e não consegue deixar o trabalho porque não tem jamais condições de pagar a “dívida”, que só aumenta. Fugir? Impossível! “Jagunços”, “capatazes”, enfim, uma guarda privada e fortemente armada está sempre pronta para abater aquele que ousar escapar sem pagar.
Muitos desses escravos são crianças ou adolescentes que, na esperança de não morreram de fome, abandonaram a escola em busca de trabalho. É uma situação aviltante, chocante! E o pior é que alguns dos que mantêm seres humanos em regime de escravidão posam publicamente como homens de bem e “cristãos” devotos. Isso quando não pagam fortunas a agências de publicidade para promoverem suas empresas que vivem do trabalho escravo. Como diz a letra da canção de Gilberto Gil, a usura dessa gente, já virou um aleijão. Gente hipócrita!
A escravidão é um crime contra a humanidade. O artigo 1o da convenção assinada em Genebra ainda em 1926 define a escravidão como “o estado ou a condição de um indivíduo sobre o qual se exercem os atributos do direito a propriedade ou alguns deles”. Já segundo a “convenção suplementar relativa à abolição da escravidão”, adotada também em Genebra, só que em 1956, estão inclusas entre as instituições e práticas análogas à escravidão: a servidão por motivos de dívida, o cativeiro, o casamento forçado (mediante pagamento aos pais, ao tutor ou qualquer pessoa ou grupo), assim como o trabalho forçado de crianças e de adolescentes.
É possível que as pessoas de bem não se dêem conta hoje do quanto este crime é doloroso para suas vítimas porque os livros de história, por meio dos quais elas estudaram e estudam, costumam representar a escravidão de negros, no passado, como algo indolor. Se a escravidão, embora abolida oficialmente, cresce debaixo do nosso nariz, é porque o abolicionista Joaquim Nabuco estava certo quando afirmou, ainda no Século 19, que a escravidão permaneceria “por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Como é que conseguimos conviver com ela ao mesmo tempo em que afirmamos – em mesas de bar ou durante o intervalo para o café – que temos vergonha do fato de o Brasil ter sido um país cujo Estado praticou a escravidão e o tráfico internacional de escravos? Bons sentimentos e intenções não bastam (o dito popular é feliz em sua afirmação de que, de boas intenções, o inferno anda cheio)! É preciso mobilização!
É chegada a hora de cobrar de nossos parlamentares a aprovação da PEC e políticas públicas que combatam e previnam a escravidão e/ou as situações análogas a ela. É chegada a hora de denunciar os casos de escravidão à imprensa ou aos blogs progressistas. É chegada a hora de rogar aos nossos deuses que eles façam com que o chicote seja, por fim, pendurado; e que devolvam a liberdade a quem, para ser livre, foi criado.
* Jean Wyllys é jornalista e linguista, é deputado federal pelo PSOL-RJ e integrante da frente parlamentar em defesa dos direitos LGBT.
** Publicado originalmente na coluna do autor, no site da revista Carta Capital.
(Carta Capital)